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1 de agosto de 2016

O feminismo vendido como produto + Spice Girls e Girl Power

Há um tempo tenho observado diversas marcas usando frases como "Girl Power" e outras mensagens feministas como produtos de moda. Não há nada de errado em blusas com frases de efeito, na verdade isso é uma técnica de protesto através da Moda que eu apoio. A questão levantada aqui é o uso de pautas feministas pura e simplesmente por modismo descartável produzido em massa e que passam longe do conceito da empresa.  

Quando pautas feministas viram produtos comercializados em massa ou fora de propósito, tem seus significados esvaziados e logo perdem força. Uma das formas do sistema dominante tirar a força de uma causa é se apropriando dela. É um "truque" muito bem elaborado. Não apenas o feminismo mas outras causas sociais de igual importância costumam ter suas lutas cooptadas quando começam a se sobressair.


Muitas mulheres estão engajadas com o feminismo no dia a dia, seja politicamente, em grupo ou solitárias. O feminismo tem sido debatido em diversos sites ao redor do mundo conscientizando cada vez mais. Atento à isso, as empresas visando ganhar a simpatia destas mulheres passam a fazer campanhas de marketing e criar produtos que reflitam pautas da ideologia. Assim como grandes empresas, marcas alternativas também tem embarcado nessa pra acompanhar as trends. 

Mas deixo um alerta: não se pode dar um passo maior que a perna e vender algo que não possam sustentar. A partir do momento em que se é dono de uma marca e usa-se do marketing para divulgar as peças, deve-se evitar esvaziar o significado de qualquer causa social que esteja em evidência. Deve-se ter responsabilidade sobre o que está vendendo especialmente se seu público alvo é muito jovem.

Desde o último ano, centenas de lojas online apareceram com o mesmo tema de coleção: anos 90, pegada Clubber, Kawaii, Riot Grrrl e "empoderamento feminino". No embalo destas tendências querem aliar a imagem da marca ao estilo "cool" mas acabam prejudicando de alguma forma os movimentos sociais e políticos.


Como lidar quando uma loja anuncia que vende "looks para todos os corpos" com modelos "plus size" na foto de marketing, mas ao analisar o catálogo, a maioria absoluta das roupas vendidas
vão apenas até o tamanho G?
@gypsywarrior

O movimento Riot Grrrl que informava sobre feminismo e incentivava meninas a terem suas bandas, também tem seu conceito vendido como produto de moda.
@gypsywarrior

Colar "Riot Grrrl" da Disturbia. A marca sempre focou no gótico e no ocultismo, sendo uma das lançadoras desta tendência. O que os fez vender um produto tão diferente do que costuma ser seu catálogo? Oportunismo comercial?

@Disturbia Clothing

Não há inocência no mercado. O mercado quer vender. Se uma marca está vendendo “girl power" ela precisa oferecer produtos que cheguem à todas as mulheres (Helena do blog Garotas Rosa Choque escreveu um post sobre blusas "empoderadoras" que só vem em tamanho P).
Se uma marca quer empoderar mulheres, que tomem como exemplo outras marcas que já fazem sem utilizar a banalização do feminismo: reestruturando seus conceitos e visões de mercado. Se engajando pessoalmente em movimentos ideológicos que se identifica, assim a mudança pessoal se refletirá naturalmente no trabalho sem precisar reproduzir um estereótipo vazio de significado.
Não dá pra vender girl power se a marca não abraça e dá "poder" às mulheres que visa como público alvo. Um exemplo muito conhecido dessa confusa mistura de moda, feminismo e comércio  são as Spice Girls. 




Em meio as comemorações dos 20 anos do single "Wannabe", tem se falado muito sobre o girl power do grupo pop que influenciou diversas meninas. Pra falar sobre isso vou levantar alguns fatos daquela década:
- Fundada em 1988, a revista feminista Sassy é lida por adolescentes até seu fim, em 1994.
- Em 1991 surge o movimento Riot Grrrl que perdura até 1997.
- Em 1995 a banda Shampoo lança seu álbum chamado Girl Power [video].
- Gangs de meninas estavam em voga na mídia, como as Patricinhas de Beverly Hills, Jovens Bruxas e em grupos como TLC, Salt-N-Pepa: garotas de atitude e de sexualidade agressiva.

Foi na década de 1990 (como abordamos aqui) que a cultura alternativa passou a ser cooptada em definitivo pelo mainstream. De lá pra cá, o sentimento e o comportamento de grupo perdeu lugar para o individualismo. Este comportamento de grupo era típico dos movimentos feministas dos anos 1960, 1980 e das Riot Grrrls. O “feminismo” das Spice Girls sugeria uma “sisterhood”, onde amigas se ajudavam a serem mais autoconfiantes. Mas esse tipo de mensagem pouco fez efeito em mudanças sociais, pois elas já estavam na onda individualista, tanto que cada uma tinha um estilo próprio. Muitas meninas tiveram contato com essa abordagem de empoderamento individual, mas sem o engajamento político nas causas feministas. 


As Spice Girls e o Girl Power como produto
As Spice eram um grupo concebido por empresários e Geri Halliwell era a mais envolvida nas composições. Elas tinham essa ideia maravilhosa de "fraternidade feminina" que infelizmente foi abafada pela imensa dimensão comercial que elas tomaram como artistas. De repente aquele Girl Power empoderador virou diversos produtos: pirulito, bolsa, chiclete, Pepsi, maquiagem, bonecas (veja lista aqui), roupas, um "feminismo" divertido e fofo sem criticas sociais e de gênero, tudo dentro das tendências de consumo do mercado adolescente. 




Wannabe” é uma canção que prega o valor da amizade entre mulheres mas segundo o documentário feminista "Atitude Cor de Rosa" [teaser aqui], peca na parte principal, quando as garotas dizem o que querem:

“tell me what you want, what you really, really want” 
(me diga o que você quer, o que você quer muito, muito mesmo)
"I wanna, I wanna, I wanna, I wanna, I wanna really Really really wanna zig zig ha."
(eu quero, eu quero, eu quero, eu quero, eu quero muito muito mesmo zig zig ha)


As mulheres querem muito, mas muito, muito mesmo tantas coisas, mas na letra elas querem justamente algo que não significa nada: "zig zig ha". É um exemplo do esvaziamento de fala de mulheres quando chegam na posição de dizer o que querem e o que pensam. Quando elas finalmente estão com toda atenção para si, com as roupas certas e atitudes certas, o que sai de suas bocas é um desejo vazio de significado que ninguém entende. É como colocar uma mulher pra discursar num palanque mas quando ela abrir a boca, ao invés de um discurso eloquente, sair um monte de balõezinhos de blablabla e mimimi. Ou como o estereótipo da mulher linda e burra que não fala nada com nada ou da intelectual chata que precisa ser silenciada.

O “zig zig ha” é como uma metáfora de tudo isso, porque visualmente o estilo e o comportamento das Spice tinha atrevimento e provocação. Era comum na década de 1990 a ideia de “ter atitude". Isso diferenciava uma garota 'normal' de outra mais ousada ou alternativa. As Spice eram desbocadas, Victoria não sorria nas fotos, Geri quebrou o protocolo num nível altíssimo quando apertou a bunda do Príncipe Charles. Elas batiam de frente com a ideia de garotas serem Barbies ou Princesas Disney, tanto que Mel C tinha um visual bem moleque. Eram sensuais sem neuras quanto às suas sexualidades, sem se preocupar com julgamentos. E naquela época ainda era tabu falar abertamente de sexo. 
Mas feminismo é um movimento de engajamento político e isso elas não tinham.



A formação da mentalidade de consumo feminino através da Moda.
As Spice fizeram um bom trabalho influenciando garotas à sua maneira. Mas hoje, percebemos que aliar consumo a feminismo não é um bom negócio. É bom problematizar um pouco quando começamos a perceber como o patriarcado vende as mulheres para mulheres. 

O marketing quando usado em parceria com a música pop tem um alcance que o alternativo não tem. Ele consegue atingir justamente quem necessita ouvir esse tipo de mensagem. A cantora Shirley Manson e Kathleen Hanna (uma das criadoras do movimento Riot Grrrl) elogiam Miley Cyrus, o que nos deixa intrigadas sobre algum lado da Miley que não conhecemos. O pop e o alternativo podem ter relação sim, especialmente se há ideologias em comum. Kathleen Hanna hoje dá entrevistas para veículos que jamais daria na época de Riot Grrrl, porém, nunca a vimos dar um elogio sequer às Spice.

As Riot Grrrls, criadoras* do termo Girl Power, eram contra o feminismo sendo usado como mercadoria a ser consumida e hoje consigo entender o porquê: porque feminismo é uma causa política muito séria que envolve mudanças comportamentais e sociais muito grandes que nem todos estão dispostos a fazer. E justamente estes que não estão dispostos a ceder seus privilégios ou que podem ser prejudicados é que ajudam a abafar lutas sociais de mudanças de mentalidade e comportamento.

A moda é uma das indústrias mais poderosas do mundo, ela molda os gostos das pessoas. Ela dita comportamentos. A moda decide o que você vai comprar neste verão. Diz o que você deve exibir pra ganhar status. A moda tem um poder absurdo na formação da mentalidade de consumo das mulheres. A moda sabe que mulheres compram o que é vendido de forma “certa”. 
A moda prega o individualismo. Só que qualquer mudança social que quisermos não faremos sozinhas, individuais, só faremos reunidas em grupo. E garotas jovens buscando esse individualismo são o consumidor foco dessa indústria poderosíssima que não está interessada em ideologias, mas sim em lucros. 


* criadoras no sentido em que conhecemos hoje, aliado ao feminismo.

Direitos autorais:
Artigo original do blog Moda de Subculturas, escrito por Sana Mendonça e Lauren Scheffel. 
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14 comentários:

  1. tô batendo palmas aqui pra vc! que matéria fodástica!
    tava pensando nisso já há um bom tempo... e você soube escrever da melhor forma! =D

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    1. Obrigada Cristine!
      Que bom que minhas palavras representaram teu pensamento <3

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  2. QUE SAMBA ESSE POST

    adoro conteúdo que destrincha conceitos à longo prazo, faça mais por favor <3

    www.nebelin3.com

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  3. Artigo maravilhoso!!!!! Falou tudo!!!!!

    Só observação:

    Hoje ficou mais fácil uma mulher falar de sexo. Porém sinto q ainda há uma confusão em relação a mulher querer expressar sua sexualidade e ela ser obrigada a fazer isso por marketing. É um linha muito tênue principalmente no mainstream.
    Um exemplo é a Miley Cyrus q vc citou. Apesar do apelo pop grande,ela tem consciência sobre a sexualidade no feminismo. Ela é um dos poucos artistas pop assim como Lady Gaga e Demi Lovato q são engajadas em causas sociais de verdade mas, pelo fato de serem artistas pop não são levadas tão a sério.

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    1. Entendo essa linha tênue!
      É como o lance da objetificação, é complicada a linha entre expressar livre sexualidade e estar sendo objetificada...
      Ao menos no meio alternativo, eu concordo com você que artistas pop não são levadas à sério mesmo com engajamento político/social. É algo pra gente repensar!
      Bjs e obrigada pelo comentário!!

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  4. Que matéria foda!
    Eu sempre falo que essas lojas embarcam na onda dos movimentos sociais só pra vender. Agora só o que eu vejo é patches com 'girl gang', fotos de modelos brancas, loiras e magras abraçadas com 'support your local girl gang' e mil mesmices que estereotipam o Girl Power como se ele fosse a foto que você posta no Instagram, e não o poder de empoderamento que o feminismo nos traz. É triste, é revoltante!
    E quanto às lojas plus size: vão só até o 44! Hahahahaha
    Falei disso num post meu, pôxa, quem usa 52 também quer ser alternativo!
    Muito bom o post, Sana, adoro quando você escreve esse tipo de matéria, onde desmascara as verdadeiras intenções dessas lojas :)
    Beijão!

    www.vultuspersefone.blogspot.com

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    1. Rafaela, é triste notar que tudo vira comércio hoje. Lutas sociais tão importantes que deviam ser respeitadas estão na verdade sendo banalizadas.
      Direto eu vejo essas lojas "plus size" vendendo só até o tamanho G! Na verdade elas perdem clientes quando não vendem tamanhos diversificados. Passou da hora da moda sair dessa fase "consumidor idealizado" e partir pro consumidor real! ;)
      Bjs e obrigada por deixar sua mensagem!

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  5. Sana, já elogiei e incentivei algumas vezes a forma como vc põe pra fora suas ideias e sempre levanta ótimas discussões tanto no MDS como no Diva. Parabéns por esse post. Queria por para fora o que penso dessa forma também.

    No mais eu não tenho nada a acrescentar. Até tentei comentar algo, mas não queria vir aqui e dizer mais do mesmo. Gostaria só de entender como a moda prega o individualismo. Não entendi muito bem essa parte :) pois eu enxergo esse termo como uma autonomia no sentido de que por mais que eu faça parte de um grupo eu tenha, digamos, um respeito maior pelo meu "eu" e minhas ideias ..enfim. Para mim é a minha blindagem de não me alienar as coisas/pessoas/ideais sem sentindo. Ou individualismo é egoísmo e eu estou equivocada? rs

    Abraço.




    danificaresubverter.blogspot.com

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    1. Jeh, seu pensamento sobre individualismo está correto, o individualismo seria a livre expressão do indivíduo.
      Só que que no caso em questão, o individualismo se alia ao capitalismo num estilo de vida baseado em consumo, onde absolutamente tudo vira produto a ser comprado para satisfação pessoal e pro indivíduo criar sua livre expressão.
      O indivíduo fica sendo então "superior ao social", só que mudanças na sociedade só ganham força quando praticadas em grupo. E nem todas as mudanças sociais estão alinhadas com os desejos do capitalismo/consumismo (algumas são até opostas).
      O ideal seria achar um ponto em que indivíduo e sociedade fiquem balanceados, e pra isso é necessários ceder alguns privilégios.

      No caso das subculturas, o individualismo surgiu como (também) uma forma de diferenciar os jovens de seus pais, naquelas épocas todos se vestiam se comportavam igual, o "social" era superior ao "individual". Nos anos 90, o capitalismo/consumismo entra com força pra satisfazer esse desejo de sermos "únicos" e a gente se afasta mais e mais do social.
      Individualismo não é egoísmo, mas nada impede que uma pessoa egoísta seja também individualista :)

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  6. Perfeito! Tudo que eu penso escrito em um post!

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  7. Excelente post, como sempre!
    Quando eu comecei a ver roupas, acessórios, etc com essa pegada Grl Pwr eu confesso que achei legal. Pensei: poxa, a luta tá chegando nas pessoas, elas estão começando a entender o sentido das coisas e se juntando pra buscar um mundo mais cheio de mulheres empoderadas. Doce ilusão. A medida que o tempo foi passando eu fui percebendo que o negócio era só vender mesmo. Fiquei bem triste com isso. Pra todo lado era blusa com frase empoderadora, mas as lojas que vendiam não faziam a mínima questão de empoderar todas as mulheres. Como já foi citado por você e por algumas pessoas no comentários, era loja vendendo só tamanhos pequenos, ela loja que não fazia questão de ter empatia com seus consumidores e por aí vai. Quer dizer então que pra ser empoderada, feminista e tal só se você fosse magra? Só se coubesse nos padrões de beleza? Mas que legal hein. Super empoderador. E o pior de tudo era ver que além das lojas que não tinham esse engajamento social estarem vendendo as coisas e as esvaziando de seu real significado, tinham pessoas que compravam aquelas peças e as usavam, mas também não tinham a menor empatia pela luta feminista ou pelos seus semelhantes. Aconteceu a mesma coisa que aconteceu com as peças com símbolos ocultistas. Cristãos usando pentagramas e outros símbolos só porque estavam na moda e coisas do tipo.

    Sobre as Spice Girls, eu acho que nunca tinha reparado na letra dessa música Wannabe. Era levada só pelo ritmo e clipe, mas poxa, isso é tão real. Mais uma vez, ao invés de usarem a música para realmente empoderar as mulheres, eles ensinaram que quando você finalmente estiver em um lugar de fala, você tem que parecer uma idiota que não fala nada que tenha algum sentido. Muito triste isso.

    Mas a gente continua firme e forte na luta, tentando vencer todos esses empecilhos que quem não quer perder seus privilégios coloca pra tentar deslegitimar a nossa causa. Quem sabe, algum dia, essas roupas que foram vendidas apenas pelo lucro não desperte o interesse em alguém de se empoderar e abrir os olhos, né!? ^^

    bjin

    http://monevenzel.blogspot.com.br/

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