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21 de maio de 2022

Shibari e BDSM como “arte e empoderamento”: Como o neo/liberalismo se infiltra discursivamente no feminismo.

Discussão iniciada a partir destes stories postados em nosso Instagram:




Shibari e BDSM como “arte e empoderamento”: Como o neo/liberalismo se infiltra discursivamente no feminismo.


Se Shibari é arte eu não sei. Porém a palavra “empoderamento” em sua origem e significado nada te ver com “poder individual feminino” ou algo do tipo - essa é a liberalização, deturpação do termo.

“Empoderamento” surge no sul global, quando mulheres se organizaram de forma criativa e efetiva para saírem de circunstâncias de pobreza e miséria. Coletivamente. Mulheres agindo de forma autônoma, política, econômica pelo bem delas e do entorno = empoderamento feminino.

Ao se apropriar e deturpar pautas e ideias revolucionárias feministas, o liberalismo intenciona transformá-las em discursos ocos, sem efeito de transformação político-social e, ao refletirmos sobre eles com mais profundidade, encontramos lacunas e dúvidas.

O “feminino” - interpreto como “para mulheres”. A historiadora Gerda Lerner, no livro A Criação do Patriarcado, diz que a mulher (o sexo feminino) foi o primeiro ser escravizado - dentro de todo tipo de coisas que vocês imaginam por escravidão. Técnicas de crueldade foram testadas nelas primeiro para que os homens pudessem aplicar as técnicas que deram certo nos seus inimigos conquistados em guerras. E como vimos, a origem do shibari se dá visando imobilizar, humilhar e torturar presos publicamente.

“Mulheres” são uma classe sexual, significa que possuem experiências de opressão em comum apesar das diferenças de raça, classe social e geografia. Um dos medos comuns às mulheres ao redor do globo é o da violência sexual que as torna hipervigilantes, como explica Graham no livro Amar para Sobreviver. Aquela história de "intuição" (feminina), que dizem ser algo "natural" ou "místico" nada mais é do que uma espécie de memória genética do medo constante, que pela hipervigilância gera uma capacidade de “prever” situações de perigo. Não há nada místico nisso, é estratégia milenar de sobrevivência.

Partindo do entendimento que a violência sexual contra a mulher envolve controle social, moral, psicológico, econômico, político e cultural, mulheres sempre sofreram violências masculinas, a novidade moderna é que no liberalismo elas "consentem" em performar de forma erótica violências históricas contra sua classe sexual.

Hitler tinha como símbolo pessoal o chicote. Ele gostava de ver mulheres fortemente amarradas. Não à toa que parte da referência estética da subcultura fetichista são quepes e sobretudos de couro ou vinil na modelagem da moda alemã fascista da década de 1940. Isso de forma alguma significa que seus adeptos são fascistas, ou nazis… no entanto, é preciso que seus adeptos tenham consciência que estão sujeitos à crítica política, e justamente por isso, desenvolveram suas defesas, as mais famosas delas são: “consentimento” e o argumento de “liberdade individual” - é aqui que chegamos ao liberalismo, pois “Liberdade individual” não significa sempre progressismo. Bugou, né? Pois é, este é um dos alicerces da política neoliberal.

"As políticas antirracistas, antifascistas e anticapitalistas dependem de um entendimento de que os oprimidos não buscam, precisam ou querem sua opressão. Somente aqueles que são homens brancos detentores de riqueza estão em qualquer posição de exercer consentimento verdadeiro a um sistema político que rotineiramente degrada, explora e controla todos os outros. O sadomasoquismo utiliza essa noção politicamente manipulativa de consentimento para se justificar." [Jeffreys*]

A construção social de hierarquia de poder, da relação dominante-dominado é típica do capitalismo, do patriarcado, do racismo. Reproduzir essa lógica na relação sexual é validar a existência de classes (a que deve ser oprimida e a que deve ser opressora) no âmbito privado. Embora muitas destas pessoas se denominem antissistema, antiopressões e até estejam envolvidas com movimentos sociais na vida pública.*

Teóricas do feminismo liberal SABEM que a opressão feminina é pelo sexo (suas obras apontam isso), no entanto, colocam a carga de responsabilidade de resolver as opressões históricas sobre os ombros da individua, da mulher. Por isso a corrupção do termo "empoderamento", foi uma bela saída discursiva para continuar mantendo as mulheres reproduzindo a filosofia patriarcal sem se dar conta.

“Por exemplo, feministas liberais se recusam a problematizar a prostituição, pornografia ou objetificação sexual, dizendo que essas atividades são uma escolha da mulher. Da mesma forma, o BDSM é visto completamente acriticamente, como apenas mais um item no menu sexual que as mulheres consentem ativamente em participar e obter prazer. O BDSM é entendido pelas feministas liberais como empoderador e transgressivo.” [Kiraly; Tyler]**

"A noção de que as mulheres podem consentir em uma cultura patriarcal precisa de uma crítica cuidadosa. As mulheres são socializadas desde o nascimento para agradar aos homens; internalizam a ideia de que devem sexo aos homens, e que eles devem apreciá-lo. Se o “consentimento” é entendido como um “sim” entusiasmado ou simplesmente não dizer “não”, faz pouca diferença quando consideramos como mulheres e homens são guiados em contrastar papéis masculinos e femininos com papéis de relações de poder e autonomia." **

"Na política feminista liberal, e é comum ouvir a afirmação de que poder escolher é o objetivo do feminismo e que as mulheres não devem julgar umas às outras pelo conteúdo de suas “escolhas”.

Essa retórica da escolha-como-libertação concentra-se no indivíduo, ignorando assim as maneiras pelas quais nossas escolhas são limitadas por nosso ambiente. Também evita os desafios de tornar a vida pessoal política, e de tomar uma posição que pode ser percebida como impopular, não sexy ou excludente." **

"Da mesma forma, nem todas as mulheres do mundo têm capital social ou financeiro ou estabilidade para poderem ‘escolher’ o que vão e não vão fazer, fato que o feminismo liberal, como um movimento principalmente branco de classe média, tende a ignorar convenientemente. Em uma sociedade onde o desejo sexual é definido principalmente como desejo masculino, que tipo de escolhas sexuais que as mulheres podem realmente fazer?"**

Construção do nosso imaginário sexual e erótico:


Nossos gostos são moldados. Não tem essa de “eu SEMPRE gostei disso”. Sempre?

Se o amor não foi o mesmo ao longo dos séculos e nem tem o mesmo significado em diferentes sociedades da atualidade, o que dizer do erótico e sensual? Também é algo que somos ensinados pela sociedade, com referências.

Tendo consciência disso, existem grupos de lésbicas e gays ao redor do mundo que não querem permitir visuais BDSM nas Paradas do Orgulho, por conta de crianças que lá aparecem com suas famílias. Todo ano acontece a tentativa de restringir esse tipo de vestuário e todo ano a resposta é: pode ter esse visual na Parada porque tudo depende do “consentimento". Porém sabemos que o cérebro em formação da criança tudo absorve e forma referenciais.

O modelo de sexualidade atual foi construída pelos homens do passado. Revistas femininas (hoje sites) em suas matérias ensinam mulheres a conquistar homens. E ocultam um detalhe: a sexualidade feminina anatomicamente é completamente diferente da masculina. O prazer sexual da mulher não precisa de homem para acontecer, pois sua anatomia separa prazer e reprodução, em uma das mais geniais criações da natureza: o prazer feminino é clitórico, é lá que estão as terminações nervosas e isso ocorre porque a natureza é inteligentíssima: pela vagina passa um bebê. Se houvesse terminações nervosas na vagina, a dor do nascimento seria insuportável. Para os homens não há essa divisão, e por isso criaram narrativas, invenções e mitos e o que mais quiserem inventar até os dias de hoje da mulher frígida, sem interesse, pudica e as mulheres acreditam porque a elas foi negado o conhecimento do próprio corpo. Acreditam porque foram colonizadas pelo imaginário erótico masculino. Não à toa, as empresas de brinquedos eróticos fálicos tem agora mulheres / influenciadoras como divulgadoras.

Produtos caríssimos. Mesmo mulheres não-héteros promovem acessórios fálicos sem se dar conta que esse é o discurso do prazer sexual masculino. E apenas recentemente na história surgiram brinquedos exclusivos ao clitóris, constantemente vendidos como "auxiliares" à penetração – mesma visão masculina da sexualidade feminina.

O fato do prazer sexual da mulher não precisar de homem pra acontecer, fez com que os homens criassem narrativas de que quem estava errada era a mulher. Freud chegou a dizer que o prazer clitórico era infantil e que a mulher adulta deveria ter “prazer vaginal” (invenção que se propaga ainda hoje). Mulheres chegaram a fazer cirurgia para retirada do clítoris na tentativa de “transferir” o prazer para a vagina. Algo impossível de acontecer dada o já explicado funcionamento da anatomia feminina que separa prazer e reprodução.

E porque fiz essa digressão imensa sobre sexualidade feminina?

Para mostrar como as mulheres ainda hoje não sabem como funciona sua anatomia e reproduzem o discurso masculino sobre o que e como seria a sexualidade feminina.

Ora, se isso acontece com o físico, imaginem com o imaginário? Podemos chamar isso de colonização do imaginário sexual e erótico.

E o BDSM entra nisso na medida em que é quase impossível afirmar qual desejo feminino “natural” ou “liberado" sem a influência da visão masculina.

Digo "quase" porque mulheres conscientes desta questão têm tentado descobrir.



Domme: Empoderada por ser dominante?


A "dominadora" não domina, pois está a serviço do homem masoquista.

Um homem submisso ainda é o centro porque a dor é o prazer dele. Uma dominatrix está dando exatamente o que ele quer. A domme emula a situação real de dominação masculina e submissão feminina, pois a coisa mais humilhante que homens podem imaginar em nossa sociedade é ser tratado como uma mulher.

Mesmo quando parceiros não heterossexuais se envolvem no BDSM, eles ainda estão replicando a dinâmica de poder da heterossexualidade: o dominante e o dominado.

Fora do âmbito privado, o homem submisso retorna à posição de poder enquanto as mulheres devem enfrentar subordinação social e sexual em sua vida cotidiana.**

O homem submisso é um mito e tem origem na pornografia.

O livre arbítrio é um mito para as mulheres num sistema patriarcal.

A moda cria uma imagem extremamente glamourosa dessa cultura.

“Se uma parte está sendo objetificada a outra está objetificando; porque ela tem o poder, a agência de objetificar. Isso automaticamente a coloca numa posição de hierarquia e de superioridade”.**

Frígida, conservadora, "mal comida", são xingamentos de cunho sexual que mulheres recebem ao apontar a incoerência discursiva dessa "arte". Mas ora, não é exatamente assim que as mulheres que não obedecem aos desejos dos homens foram chamados ao longo da história??

O que há de progressista em xingar mulheres da maneira mais secular conhecida: controlando sua sexualidade?

Nada de novo. Eles estão conservando um discurso milenar.

As mulheres podem controlar os homens? Se elas pudessem dominar os homens fora do espaço de controle, haveria femicídio? Violência doméstica?

Se as mulheres criassem suas próprias formas de expressar sua sexualidade, elas usariam de sugestões controladas de violência sendo elas o sexo que desenvolveu a hipervigilância como forma de sobrevivência?

Por que a agressão não é permitida fora destes espaços privados “consentidos”?

Resposta: porque existe uma moral social estabelecida a respeito da não violência. Porque socialmente sabe-se o que é violência.

Liberdade / sexual / escolha: nós fazemos escolhas, mas estas são moldadas e restritas pelas condições de desigualdade em que vivemos. Só faria sentido celebrar sem críticas o poder de escolha em um mundo pós patriarcado.

A “escolha” do feminismo liberal têm dificultado desafiar as instituições que atrasam o progresso das mulheres. Se você “escolhe” sua opressão, por que vai lutar coletivamente contra as opressões?

Ao sugerir que as mulheres já conquistaram sua liberdade, aniquilam qualquer possibilidade de revolta feminina e abalo do sistema.

O feminismo liberal está na mídia, artistas, na boca de influencers. E veio pra ficar enquanto o neoliberalismo atuar. Privilegiando escolhas individuais acima de tudo, não desafia o status quo. **

Para finalizar, deixo claro: existe uma variedade de subculturas dentro do termo “fetichismo”, creio ter ficado claro de qual falamos aqui especificamente.

A intenção principal neste texto é gerar reflexão. E isso toma minutos, horas, dias...


Aviso:

Manipulação emocional não tem espaço aqui. Mensagens  com tentativa de manipulação psicológica, assédio moral ou constrangimento não responderei e serão devidamente printadas e salvas para análise jurídica.

Esta mulher que vos escreve é intelectualmente insubmissa.


Referências:

LEIDHOLDT, Dorchen. “Where Pornography Meets Fascism”. WIN, 15 de março de 1983.

**Kiraly, M. & Tyler, M. 2015. Freedom fallacy: the limits of liberal feminism, Ballarat, Vic, Connor Court Publishing.

*SHEILA, Jeffreys. The Lesbian Heresy: A Feminist Perspective on the Lesbian Sexual Revolution. Spinifex Press, 1993.


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Artigo original do blog Moda de Subculturas, escrito por Sana Mendonça e Lauren Scheffel. 
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